ORIGEM DO NOME BAGÉ: A VISÃO DE JOÃO ANTONIO CIRNE

Claudio Antunes Boucinha. [1]

Introdução

João Antônio Cirne, após a paz da guerra civil farroupilha, se fixou em Bagé, aos 26 anos de idade, onde casou com dona Maria Filisbina dos Santos, tendo a boda se realizado na igreja de São Sebastião (1845). João Antônio Cirne faleceu em 1900, portanto, com 81 anos de idade. Elaborou os “Apontamentos Históricos de Bagé e da Capela de Dom Pedrito”, texto com seis páginas que pode ser consultado em revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, transcrito e anotado por elogiável obra de Miguel Duarte, então servidor daquele órgão. Em Bagé, por conseguinte, Cirne viveu 55 anos de sua vida. Como chegou em 1845, já se passara 34 anos desde 1811, fundação de Bagé. (GIORGIS, José Carlos Teixeira. “João Antônio Cirne”. Disponível em: http://www.jornalminuano.com.br/noticia.php?id=52872&busca=1&palavra=antonio%20cirne). Parte do relato de Cirne estava em: Salis, Eurico J. História de Bagé. Porto Alegre: Globo, 1955, p. 33. Possivelmente, o relato de Cirne foi escrito após o extermínio dos índios na região de Bagé, considerando a afirmação: “Oxalá que, no oceano das idades, na poeira do esquecimento, não exista eternamente sepultada a memória de um chefe selvagem, que, apesar de sua rudez, no coração palpitavam-lhe nobres sentimentos que jamais tiveram aqueles que deram fim aos oriundos da sua raça”. O massacre de “Salsipuedes” ocorreu em 11 de abril de 1831; foi a primeira de uma série de ações em uma campanha de extermínio dos charruas nos primórdios da República Oriental do Uruguai[2]. As perseguições só terminaram com os combates de extermínio em 1831 e 1832, realizados à traição; nesses combates, charruas e minuanos foram destroçados em campo[3]. O tom do escrito de Cirne é equidistante, com uma simpatia indelével pelos índios, de fundo romântico; nada indicava uma ideia de confronto, batalha contra os indígenas; o índio Ybagê já era mito, quando Cirne escreveu. Deve-se observar que Cirne não citava o “túmulo” de Ybagê.

Para o bom entendimento dos processos desencadeados na região, era preciso ter em evidência a “província do Tape”.

A província do Tape

Tape quer dizer povoação grande, por que corria a fama de existir quantidade incontável de gente. O Padre Roque Gonzalez definia o território do Tape em torno de uma superfície de 300 por 100 léguas. Outro grupo era formado por agricultores que se utilizavam da técnica de coivara, conhecido pelo nome de guarani ou Tape. O padre Roque Gonzáles, logo após a sua primeira viagem à região, observou e escreveu que "em todo Tape, como antigamente a gente era muita, acabaram os matos e, assim, lavraram entre serros, montes e vales". Conforme nos informa (Porto, 1937, p.24): "A Província do Tape estava encaixada entre a de Ibiaçá ao norte e a do Uruguai ao sul e oeste e o Atlântico a leste. A norte e oeste era dividida por todo o curso do Jacuí, desde as suas nascentes setentrionais até a Lagoa dos Patos, confinando aí, com a de Ibiaçá. Ao sul, extremava-se da província do Uruguai pela Serra Geral, desce a seção ainda hoje conhecida por Serra dos Tapes até as origens do Jacuí, indo morrer esta vasta região na Coxilha Geral cujos últimos contrafortes penetravam entre os rios Ibicuí e Itu, isto é, na Coxilha do Boqueirão, ponto inicial da penetração do padre Roque Gonzáles na Província do Tape". CHRISTENSEN, Teresa Neumann de Souza. “Os primeiros contatos”. Disponível em: http://www.paginadogaucho.com.br/indi/prim-cont.htm. CHRISTENSEN, Teresa Neumann de Souza. História do Rio Grande do Sul em suas origens missioneiras. Unijuí, 2001.

O Relato de Cirne

Já em meio do século passado [isto é, século XVIII, portanto, 1750] existia um [referia-se a quantidade? Referia-se a um índio genérico? Mitológico?] índio charrua [ao que parecia, existiria um equívoco em apontar charruas na região; a melhor indicação, em primeiro lugar, seria minuana; em segundo lugar, índio Tape, isto é, guaranis] denominado Ybagé, que morava com sua numerosa descendência nas fraldas de uns cerros [o nome Ybagé era vinculado a cerros], cujo nome é derivado desse primeiro habitante [o sentido é dúbio: referia-se aos autóctones ou referia-se ao primeiro ocupante reconhecido pelo europeu, do lugar?], que com sua prole constituía uma tribo isoladamente [o conceito de tribo isolada, sugeria isolados na região; não haveria registro de contato dessa tribo com a civilização; os indígenas seriam arredios; viveriam na “fronteira” entre índios e europeus; considerados “índios selvagens”; tribo de etnia desconhecida que viveria isolada da civilização; sugeria certo grau de “pureza” indígena, perante a civilização; sugeria também um refúgio em “mato” desconhecido, secreto, misterioso, na região, embora a ocupação jesuítica do local; os índios seriam somente “vítimas” do processo de ocupação? Haveria algum tipo de filosofia “indianista” no texto de Cirne?].

Ybagé era velho [logo, já era velho em 1750; qual seria sua suposta idade? Em 1811, ainda sobreviveria, depois de mais cinquenta anos? Como foi construída a memória do lugar, visto que era habitado somente por índio, de reconhecida memória oral? Seria uma memória guarani, dos índios do Tape, que sabiam escrever, pela educação jesuítica?], dócil e tratável [a docilidade aproximava-se da descrição do comportamento minuano, afável aos portugueses; bem ao contrário do comportamento charrua, avesso aos europeus em geral], tanto quanto sua inteligência permitia [o índio tinha inteligência?], e obedecido dos seus [sugeria um comportamento de “cacique”; o que não coincidiria com o perfil de um pajé, melhor apropriado ao caso, considerando a formação da palavra “Ybagé”, “Pajé”, “mbayé”].

Com tais prerrogativas pode granjear a estima e o respeito daqueles, que, armados de fuzil e em demanda da Colônia de Sacramento [“O Tratado de Madrid, celebrado a 13 de Janeiro de 1750, dispunha que Portugal entregaria a Colônia do Sacramento à Espanha, em troca do recebimento do território dos Sete Povos das Missões. Devido às dificuldades das demarcações e à resistência suscitada pela Guerra Guaranítica (1753-1756), as disposições do Tratado foram anuladas por um novo diploma, o Tratado de El Pardo, celebrado a 12 de Fevereiro de 1761”; logo, Cirne referia-se há um tempo antes de 1750? Cirne referia-se a 1680, “a 22 de janeiro, as forças portuguesas iniciaram o estabelecimento da Colônia do Santíssimo Sacramento, fronteiro a Buenos Aires, na margem oposta”? o tempo em que vivia Ybagé oscilaria entre 1680 e 1750? Talvez 1777, “A fundação da Colônia do Sacramento, no rio da Prata, desde o Rio de Janeiro, e sua manutenção por quase cem anos (1680 a 1777), foi materialização do processo de expansão territorial e comercial do Estado lusitano e das elites mercantis luso-brasileiras rumo ao Prata”; mais ou menos 70 anos, talvez mais, 97 anos de idade, para Ybagé? “Com a Independência do Brasil (1822), a Colônia passou a integrar os domínios do novo país até à Independência da República Oriental do Uruguai, em 1828”? ou seja, 148 anos de idade de Ybagé? Entre 1680 e 1811, teriam se passado 131 anos de vida de Ybagé? Deve-se observar que são números que servem apenas de especulação, visto que a data de nascimento; a data iniciação como um guerreiro, a data de iniciação como pajé, a data de iniciação como suposto cacique, a data de falecimento, são mistério], se aventuraram a cruzar estes campos, que considerava propriedade sua e dos seus como senhores da terra, que eram.

Morreu oprimido pelos anos [uma visão psicológica do índio, com uma suposta velhice desdita, abandonada, deprimida], mas temido e respeitado [uma visão política aproximada de um cacique, e não de um pajé] e só depois do seu passamento é que se dispersaram [a morte desune, dissolve o amalgama, é o fim de tudo; o patriarca morre e acaba a dinastia; visão equivocada do fim de comunidade indígena, embora se possa falar em patrilinearidade, isto é, a descendência se daria em linha paterna; os grupos locais geralmente são muito pequenos? Uma aldeia com mais de 100 habitantes é fora do padrão? O padrão dos minuanos seria em número de 60 indivíduos? Por que a morte de um elemento da tribo significaria o fim de toda uma tribo?] os membros daquela associação [haveria associados, sócios; uma visão simplista da comunidade indígena?], os quais, sempre pacíficos [visão mais próxima de índios minuanos e guaranis], posto que altivos, jamais se sujeitaram ao domínio espanhol ou português [visão próxima de charruas; duplo discurso? ambiguidades?], apesar de serem destes mais amigos [visão próxima dos minuanos].

Foram perseguidos, não porque houvessem feito mal [crime] a alguém, mas em presença do intuito de serem despojados [invasão; ocupação] do solo em que haviam nascido.

Aqui [em Bagé] mesmo conhecemos [testemunho de segunda mão], em época [indeterminada] que há muito já lá vai [tempo indeterminado], anciãos respeitáveis que referiam passar como tradição, no tempo de sua mocidade, que na taba [na verdade, os minuanos habitavam toldos] de Ybagé se proporcionava seguro agasalho [contra o que? Contra quem? Os minuanos, supostamente, estavam ligados aos portugueses].

Ao lado oriental e perto dos ditos cerros [a tradição dos cerros], que são contíguos, corre um pequeno arroio [aqui, a versão converge para a ideia de passo de bayé, mbayé, mais adequada aos mapas espanhóis mais antigos], que naquelas eras [indeterminadas] se chamava Ypagê [suposta forma da palavra, proposta por Cirne, que definia o local], cujo nome ficou depois sendo “Bagé”.

Oxalá que, no oceano das idades, na poeira do esquecimento, não exista eternamente sepultada [o lugar do mito] a memória de um chefe selvagem, que, apesar de sua rudez [pouco “inteligente”?], no coração palpitavam-lhe nobres sentimentos que jamais tiveram aqueles [os europeus] que deram fim aos oriundos da sua raça.

Conclusão

A importância do escrito de Cirne, que mereceria um melhor tratamento com devido respeito por parte do Estado, estava no registro pioneiro da tradição dos cerros e do arroio Bagé na configuração do nome local, de origem indígena.

Referencias:

GARCIA, Elisa Frühauf. “Quando Os Índios Escolhem Os Seus Aliados: As Relações De "Amizade" Entre Os Minuanos E Os Lusitanos No Sul Da América Portuguesa (C.1750-1800)”. Varia hist., Belo Horizonte, v. 24, n. 40, Dec. 2008. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010487752008000200017&lng=en&nrm=iso . Access on 29 July 2010.

SIRTORI, Bruna. Nos Limites Do Relato: Indígenas E Demarcadores Na Fronteira Sul Da América Ibérica No Século XVIII. http://web01.bn.br/portal/arquivos/pdf/bruna%20sirtori.pdf. https://docs.google.com/viewer?url=http://www.bn.br/portal/arquivos/doc/relacaoGeralPortaL.doc.


[1] Mestre em História do Brasil.

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Salsipuedes. http://www.denorteasur.com/asp/articulo.asp?numero=251&id=1607.

[3] CHRISTENSEN, Teresa Neumann de Souza. “Os primeiros contatos”. Disponível em: http://www.paginadogaucho.com.br/indi/prim-cont.htm. CHRISTENSEN, Teresa Neumann de Souza. História do Rio Grande do Sul em suas origens missioneiras. Unijuí, 2001.

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